Filho de crítico, assim espero, critiquinho não vai ser.
Mas o público-alvo do espetáculo Tem música nos meus olhos, do grupo Baderna Moderna, era ele.
Então, os comentários são do Francisco, 5 anos e meio.
E eles não vieram em forma de palavras.
Começou no dia seguinte de manhã, enquanto tomava o café para ir à escola. As mãozinhas não paravam de batucar na perna, no sofá, na mesa de centro.
Mais tarde, na volta para a escola. Uns barulhos com a boca. Pfth, pfth, pfth.
Que é isso, filho?
“Aquilo que a moça da flauta fazia com a boca e saía um som diferente. Pfth. Pfth. Pfth."
Verdade, filho!
"Mas foi depois que ela colocou os óculos, né, pai?”
Estávamos quase chegando em casa quando veio o “tan-tan-tan-taaaaaan”.
“Teve essa também, né, pai?”
O espetáculo faz parte do Festival de Música de Câmara do Sesc e foi apresentado pelo Baderna Moderna no último domingo no Sesc Consolação (no Roteiro do Site CONCERTO dá para ver as datas e as cidades; em São Paulo, há nova apresentação no domingo, dia 19).
O roteiro é de Claudia Piccazio; a direção e concepção corpóreo-musical, de Bruna Piccazio. No palco, a violinista Helena Piccazio, a flautista Sarah Hornsby; a percussionista Nath Calan, e o clarinetista Diogo Maia (ele também toca o clarone). O objetivo: um espetáculo de música de câmara contemporânea para o público infanto-juvenil.
O enredo é o seguinte. Três músicos entram no palco, quase como soldados. Sentam-se. Chega uma maestrina, cheia de pompa, gesticula para a plateia, emociona-se com os aplausos (sem parecer estar muito preocupada com a música). Começam a tocar a Quinta de Beethoven. Param, aplausos, saem do palco. Retornam, repetem a mesma cena. Saem. Mais uma repetição.
Mas então descem móbiles do céu, cada um com um par de óculos. Eles o colocam no rosto. E o mundo de repente se revela para além do tédio e da mesmice, e tudo que temos à nossa volta parece sugerir uma presença musical.
A música está agora livre do ritual engessado do concerto. Assume diferentes formas, explora técnicas expandidas. São pequenos trechos de vários compositores: George Crumb, Messiaen, Alexandre Lunsqui, Rafael Amaral, a própria Nath Calan (a do batuque), Ian Clarke (aquela do Pfth, Pfth. Pfth), Ligeti, Meredith Monk e Ernesto Nazareth.
Não há explicações sobre as obras, ou mesmo conversas. Tudo funciona na chave do sensível, no encadeamento de sonoridades, no movimento pelo palco. As projeções, discretas, usadas com parcimônia, não dizem, sugerem. Tudo parece escolhido com enorme cuidado, cada forma, cada cor, cada traço, cada movimeno. E a música vai fazendo seu caminho, indo e voltando em um caminho que não é linear.
Que belo alento. Ter grandes músicos olhando para esse público, sem tatibitate, se dedicando a refletir sobre a relação com a música e abrindo de forma tão especial os ouvidos infantis para um universo musical diferente.
Não sou especialista no teatro para crianças, e nem vou fingir ser. Tenho a sensação de que a compreensão exata daquilo que acontece no palco, a história narrada, deve variar de acordo com a idade. Mas isso me parece menos importante do que a assimilação individual e única de um mundo sonoro. Um mundo que fica, e mexe com alguma coisa.
Aqui em casa parece ter mexido. O batuque, pelo menos, continua.
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![Os músicos do Baderna Moderna [Divulgação/Nicolle Comis]](/sites/default/files/inline-images/Baderna-Moderna-FT-Nicolle-Comis-02.jpg)
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Comentários
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A lista de compositores…
A lista de compositores tocados nessa belíssima iniciativa do grupo Baderna Moderna e do Festival SESC de Música de Câmara também incluem os brasileiros Rafael Amaral e Alexandre Lunsqui. É importante mencionar os nomes porque temos esperanças que as futuras gerações saibam que existem compositores e compositoras brasileiros criando música contemporânea, com linguagens que provocam novos olhares, novos ouvidos, novas cabeças. Temos esperanças que o ultra-conservadorismo dominante na sociedade brasileira como um todo finalmente dê lugar para um novo mundo de sensibilidades e percepções. Os compositores e compositoras do Brasil que trabalham ativamente em direção a essas transformações ESTÃO CRIANDO AGORA, não são zumbis escondidos nas profundezas, mesmo que a imensa maioria da sociedade assim considere.
Prezado Alexandre, obrigado…
Prezado Alexandre, obrigado pelo comentário. Os nomes dos demais compositores foram incluídos no texto.
Prezados, muito obrigado…
Prezados, muito obrigado pela inclusão dos nomes. Aproveito para dizer que normalmente eu não faria tal comentário. Porém, diante de uma iniciativa que considero imensamente relevante (na minha opinião muito mais importante do que dezenas de concertos de orquestras tocando o mesmo repertório sem os "óculos tão reveladores"), ter os nomes na publicação sobre o espetáculo é bastante importante, ainda mais diante do cenário tão tragicamente retrógrado que foi brevemente descrito em minha mensagem inicial.
Aproveitando o adendo digo que a essência do texto, extraído da ótica de uma criança, é fantástico. Pena que meu filho de 4 anos não poderá assistir por questões de distância, mas certamente li a crítica também imaginando o menino diante de tanta sensibilidade e descoberta.