Dois elencos, duas viúvas

por João Luiz Sampaio 02/12/2019

Artistas costumam dizer que, mesmo em uma única temporada, com apresentações dia após dia, um espetáculo nunca é igual ao outro. E é interessante também o modo como uma mudança de elenco pode transformar uma única concepção cênica. Foi o que aconteceu na produção de A viúva alegre, de Lehár, no Theatro Municipal de São Paulo.

Assisti à estreia dos dois elencos. E cada conjunto de cantores oferece caminhos distintos para a montagem dirigida por Miguel Falabella e pelo maestro Alessandro Sangiorgi.

O pano de fundo é o mesmo. O cenário é inspirado no Fauvismo, movimento de vanguarda do início do século XX, contemporâneo à estreia da obra de Lehár, em 1905.

A aproximação entre os dois é apenas temporal, ou talvez seja possível dizer que pintores fauvistas e Lehár estavam dialogando com um mundo que se desfazia e uma nova realidade ainda misteriosa. Utilizando, para tanto, idiomas bastante distintos.

Alguns cantores estiveram presentes em todas as récitas. Edna D’Oliveira é um fenômeno no palco – em um papel pequeno como o de Silvia, ela levanta o ânimo do espetáculo e o de seus colegas: Andreia Souza (Olga), Johnny França (Cascada), Caio Duran (Brioche), David Marcondes (Bogdanowitch) e Marcio Marangon (Kromov).

Cena de A viúva alegre [Divulgação]
Cena de A viúva alegre [Divulgação]

Nos dois dias em que estive no Theatro Municipal, Valencienne foi interpretada pela mesma soprano, Lina Mendes, de forma que não pude ouvir Amanda Souza. E fica, da interpretação da cantora, a memória da desenvoltura em cena e de uma voz que parece ter desabrochado de vez, fazendo de gato e sapato os Camilos de Aníbal Mancini, lírico, e o de Luciano Botelho, mais intenso. Também nos dois elencos, o jovem Adriano Tunes deu a medida correta de um humor eficaz e jamais exagerado como Njégus, uma verdadeira revelação.

Em A viúva alegre, a elite de Pontevedro está preocupada. Com a morte de seu marido, Hannah Glawari fica com toda a sua fortuna – e o Barão Zeta, durante temporada em Paris, quer garantir que ela se case com um pontevedrino para que o dinheiro não deixe o país. Seu candidato é o funcionário da embaixada Danilo. Mal sabem todos, porém, que ele e Hannah se conhecem de outra época, quando viveram uma história de amor que terminou em separação.

Para essa história, entre os protagonistas, cada elenco, no tempo da comédia, no ritmo do espetáculo, ofereceu leituras distintas. Rodrigo Esteves, como Danilo, e Camila Titinger, como Hannah, emprestam alguma gravidade à trama – o reencontro parece marcado pela memória de um amor passado mas ainda dolorido, que deixou cicatrizes profundas. Será possível curá-las?

Já Marianna Lima e Daniel Germano, desde o primeiro momento em que se veem novamente, parecem já entregues uma vez mais ao amor, à paixão, ao desejo. Na interpretação dos dois, o prazer está em divertir-se com um jogo do qual já sabemos o resultado.

Os dois barões, muito divertidos, alcançam o humor por caminhos diferentes. O de Sandro Cristopher é discreto, intimista, sutil em cada inflexão, quase alheio a tudo o que acontece à sua volta, e não apenas à ameaça de traição de Valencienne, sua esposa. Saulo Javan não – no gesto, na fala, na expressão, puxa para si a condução da trama.

Se A viúva alegre, como propõe Falabella, é obra simbólica de um período de transformação, o barão de Sandro Cristopher parece, em seu distanciamento, consciente de um mundo que morre – enquanto o de Saulo Javan busca a permanência.

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