Espelhos cobrem a grande boca de cena do Centro Cultural Belém, em Lisboa. No palco, poetas, suas musas e a bela Morte na figura de uma Princesa elegante. É a ópera Orphée, de Philip Glass, baseada no filme surrealista de Jean Cocteau, lançado em 1950 com Jean Marais no papel-título e Maria Casares como a Princesa.
O mito, muitas vezes encenado nos palcos líricos desde o século XVII, ganhou uma versão para as telas a partir de Cocteau. Nela, o músico Orfeu, em vez de buscar sua amada Eurídice no mundo dos mortos, se apaixona pela própria Morte.
Escrita em 1991, a ópera segue o roteiro de Cocteau, inclusive na reprodução praticamente exata de diálogos. Essa montagem, que é a première portuguesa do título, foi criada pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro e apresentada em outubro de 2019, também como estreia latino-americana, na gestão de André Heller-Lopes.
A concepção e a direção são de Felipe Hirsch e da diretora de arte Daniela Thomas, que estão em Lisboa para as duas récitas (quinta, dia 27, e sábado, dia 29). Da montagem brasileira, também repete o papel a soprano portuguesa Carla Caramujo, nome de ponta da ópera e da música de concerto no país ibérico.
A ópera e a montagem são as do Rio de Janeiro. Os tempos, porém, são bem diferentes. Todos os ensaios foram feitos com máscara – cantores, inclusive. “É terrível ensaiar com máscara, mas é o que precisamos fazer para que se consiga encenar”, conta Carla Caramujo. “Depois da catástrofe da pandemia, precisamos redefinir a minha personagem, no contexto sociológico e filosófico.”
Foi através da participação de Carla na montagem brasileira que André Cunha Leal, programador do CCB, se interessou pela replicação de Orphée em Lisboa. “Eu procurava uma obra de Glass para a temporada e essa oportunidade surgiu, cercada por elogios no Rio de Janeiro e com nossa grande soprano como protagonista”, diz.
O elenco é todo português, com o barítono André Baleiro (Orphée), Susana Gaspar (Euridice) e Luís Gomes (Heurtebise, o motorista da Princesa). “Temos a sorte de poder montar uma ópera com orquestra reduzida, sem coro.” A Orquestra Metropolitana de Lisboa tem Pedro Neves, seu titular e diretor artístico, à frente.
“É uma alegria enorme trabalhar com esses cantores e músicos”, conta Daniela Thomas. “Uma orquestra parceira, que se dedica ao espetáculo como um todo e chega junto com a maior boa vontade em relação à cena. A maioria das casas de ópera é ‘orquestrocêntrica’, trata a ópera como se a parte cênica fosse quase um estorvo. Isso não acontece aqui.”
Daniela adaptou seu cenário para o grande palco de 500m² do CCB. “Agora temos quatro portas de espelhos em cada lado. Nosso grande desafio técnico é a opacidade que os espelhos vão ganhando no segundo ato, através de um líquido branco.”
Felipe Hirsch, que conheceu Glass no Brasil em 2011, lembra que o projeto de montar uma obra do norte-americano vem dessa época. Ele considera o espetáculo mais “amarrado, amadurecido”, depois de quase três anos e da pandemia. “Nós todos, a humanidade, ao viver essa tragédia coletiva, hoje trazemos um questionamento muito mais presente em relação às fronteiras – inclusive a fronteira vida/morte.”
Escrita por Philip Glass, em parte, no Rio de Janeiro, sob o impacto da perda súbita e precoce de sua companheira, a designer Candy Jernigan, Orphée faz um twist final, depois de um julgamento no qual as intenções da Princesa/Morte são questionadas e ela se sacrifica pelo amor ao poeta.
“O poeta volta para sua vida doméstica, uma opção que não é melhor nem pior que qualquer outra”, considera Hirsch. “Tenho aprendido tanto sobre a vida nesse momento: tive um filho na pandemia, Inácio, que está com um ano e oito meses. O mecanismo da vida é rico por si só."
![Cena de 'Orphée', de Philip Glass [Divulgação/Rita Carmo]](/sites/default/files/inline-images/Orphee_high6367_ritacarmo.jpg)
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